sexta-feira, 7 de novembro de 2008

A insignificância do ser

Ontem após postar, fiquei com um outro tema martelando a cabeça. Fiquei na dúvida se colocava esta inspiração pra escrever ontem mesmo ou esperava. Como podem reparar deixei para hoje.

Saí do trabalho e não sei porquê fiquei pensando no João. Eu só encontrei o João apenas uma vez na minha vida. Já tinha alguns anos que este encontro aconteceu.

Ah, lembrei o motivo da lembrança do João! Vi uma garota no ônibus lendo "A hora da estrela" de Clarice Lispector.

Há uns dois atrás estava desempregada e estava participando de várias entrevistas de emprego. Cheguei exatamente na hora marcada da dinâmica de grupo, me atrasei por conta de uma chuva que estava mais para garoa e que pára o trânsito mesmo sendo uma coisinha de nada.

Estamos no Brasil, então a dinâmica não ocorreu na hora marcada. Atrasou uma hora. Enquanto estava na sala de espera, outros candidatos estavam aguardando o início da dinâmica. Estava ansiosa e para passar o tempo fiquei observando meus concorrentes.

E assim conheci o João. João tinha o típico visual de nerd. Era de pele bem branca, usava óculos e tinha o cabelo encaracolado bem preto. Não era nada atraente e nem bonito. Quando nossos olhos se cruzaram percebi que ele também estava me olhando. Continuei observando as outras pessoas e quando cruzava o olhar com ele, lá estava ele me olhando.

Como era tímido, quando nossos olhares se cruzavam, ele baixava a cabeça. Mas quando eu não estava olhando para sua direção, percebia que ele ficava me olhando (técnica feminina para perceber se o homem está te olhando) com olhar de admiração. Não senti nenhum desejo por ele, na sala de espera estava com o foco no meu futuro emprego.

Até que nos chamaram para começar a dinâmica de grupo. Se o João continuou me olhando, não percebi, estava muito nervosa com aquele processo todo, e acredito que ele também. Ele sentou estrategicamente de frente para mim. Acho que estratégico, pois existia outros lugares para ele se posicionar.

Durante a seleção, houve umas perguntas que teríamos de colocar no papel as respostas e depois anunciaríamos para os outros. O que me marcou foi quando perguntaram qual personagem da literatura brasileira os candidatos mais se identificavam. O João escolheu a Macabéa. Achei estranho ele escolher uma personagem feminina como identificação.

Assim que ele falou, fiquei com pena da sua escolha. Depois fiquei com raiva, se ele fosse meu amigo acho que ia sacudir ele, literalmente. Como alguém pode escolher uma personagem tão "coitada", inexpressiva, asquerosa. Era uma seleção de emprego, como uma pessoa se coloca tão para baixo. Ali eu percebi que o João não era feio, o seu interior que era muito menor do que ele realmente era.

A hora da estrela é um livro escrito próximo da morte de Clarice Lispector. A obra pode ser entendida como resultado da epifania da autora, descobrindo o mistério do existir. E para falar dessa revelação, acaba criando Macabéa.

Para entender minha aversão a Macabéa, segue um trecho com sua descrição, "No espelho distraidamente examinou de perto as manchas no rosto. Em Alagoas chamavam-se "panos", diziam que vinha do fígado. Disfarçava-os com grossa camada de pó branco... Ela toda era um pouco encardida pois raramente se lavava. De dia usava saia e blusa, de noite dormia de combinação. Uma colega de quarto não sabia como avisar-lhe que seu cheiro era murrinhento."

Nunca mais encontrei o João. Seu norme guardei, pois o que incomoda gruda na memória que nem chiclete no cabelo. Não fui selecionada para a vaga de emprego e acredito que o João também não foi. Mas não tenho absoluta certeza, não sei quais critérios usados para seleção de pessoas para uma determinada vaga. Se eu fosse escolher, não escolheria alguém com tanta baixa estima.

Analiso de como o mundo é repleto de pessoas como Macabéa, pessoas comuns que não tem nenhum brilho em viver. Podem morrer e no dia seguinte ninguém sentirá sua falta. Pessoas que não encontraram o sentido de existir, que a vida é vazia e nada justifica sua felicidade. Mas estas pessoas são felizes, apesar da invisibilidade.

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